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Habitação Social e Sustentabilidade

Editores convidados
Andrey Rosenthal e Pascal Acot

Junho/Dezembro de 2012

Editorial

A revista Ciência & Ambiente chega ao seu 45º número abordando o papel social da habitação e as necessárias relações entre esse tema e os elementos da cultura e do ambiente de cada local ou região.

A presente edição é o resultado das sugestões propostas pelo editor francês Pascal Acot, tendo em vista as ricas experiências de campo acumuladas no Laboratório Internacional para o Habitat Popular (LIHP), do qual ele faz parte, e pelo editor brasileiro Andrey Rosenthal Schlee, membro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Os artigos são assinados por arquitetos, urbanistas, geógrafos e paisagistas da França e do Brasil.

No primeiro texto, Camille Acot preocupa-se em identificar os obstáculos políticos e econômicos que se opõem à construção de habitações sociais dignas do ponto de vista ambiental e satisfatórias para todos. O liberalismo econômico atrelado à desresponsabilização do Estado em prol dos interesses privados ocupa o centro de suas reflexões. De passagem, faz a crítica à ideia de “virtude das favelas” e o elogio à economia informal como “portadora de novas solidariedades”.

Jean-Pierre Bouanha desenvolve a dimensão ambiental do texto precedente integrando-a ao campo cultural. Sua abordagem histórica localiza, assim, as etapas de construção social e cultural do urbano, abrangendo seus aspectos ecológicos mais humanizados; em última instância, a habitação popular representa tanto um fator de enriquecimento cultural, quanto um produto do processo contínuo e progressista de sua elaboração. Os seres humanos devem ser entendidos como produtores, atores e gestores livres de seu próprio ambiente. Nesse sentido, não seria exagero inscrever os movimentos para a habitação popular no processo global de liberação humana.

Qual o lugar da habitação popular em tempos de “contenção energética”? interrogam-se os urbanistas Vanessa Becciu e Jeremy Jegouzo. A “crise energética”, em tempos de aquecimento climático e do esgotamento anunciado das energias fósseis, marca, a partir de agora, todas as políticas urbanas: trata-se de intervir tanto no plano da eficácia energética das edificações privadas e públicas, quanto no da redução do desperdício energético em relação à necessidade dos transportes urbanos e interurbanos. Através do exemplo da cidade de Usme (periferia de Bogotá), principalmente, os autores mostram que as soluções propostas são o mais das vezes estereotipadas, quando deveriam levar em conta a singularidade das situações ambientais tanto quanto a das características culturais das populações em questão.

Os paisagistas Sylvain Delboy e Sarah Kassler abordam a controvertida questão da agricultura urbana em habitats populares. Com efeito, tal prática reveste-se de diferentes aspectos em escala mundial. Existem poucos pontos comuns entre o modelo de horticultura nos abastados bairros parisienses e o desenvolvimento vital dessa prática em Cuba, vítima de embargo econômico desde 1962, posição referendada recentemente pelo Presidente Barack Obama. Hoje, 800 milhões de pessoas praticariam a agricultura urbana, o que induz a novas estruturações dos territórios em questão, como atestam os casos do parque Baix Llobregat em Barcelona e do parque agrícola Sud Milan, ou ainda da cidade de Detroit nos Estados Unidos, atingida em cheio pela crise da indústria automobilística. Nesse sentido, no território de Usme, a agricultura urbana poderia revelar-se como um fator não negligenciável, entre outros, do desenvolvimento urbano.

O local do trabalho em habitats populares é uma das questões que se situam no âmago da reflexão do LIHP. Assim, e apenas a título de exemplo, os trajetos intermináveis que marcam o ritmo de vida dos seres humanos cujas casas ficam longe de seu local de trabalho representa um desperdício financeiro, uma aberração ecológica e um tempo vital literalmente perdido. Geógrafa universitária e pesquisadora de campo, Corinne Luxembourg vai mais longe: a questão da “sustentabilidade” social e ambiental é tida como crucial; não se trata de reduzir o trabalho na cidade lá onde as usinas estão presentes – ainda que sejam tanto quanto possível ecológicas, pois ali igualmente se encontram unidades artesanais – mas sim, e principalmente, de tomar consciência “do fato de que a existência da cidade sustentável é indissociável da imbricação com o trabalho e que, inversamente, a transformação social não se realiza unicamente no local de trabalho, mas também na cidade, nos bairros, segundo a concepção que se tem de habitação e de espaço público”.

A morada indígena e a sua profunda transformação ganham abordagem no artigo de Andrey Rosenthal Schlee. Conforme o Censo de 2010 realizado pelo IBGE, 87,4% da população indígena vivem em casas comuns e não mais em ocas ou malocas, suas moradias tradicionais. Tais manifestações culturais, em franco processo de desaparecimento, requerem registros de arquitetos e de historiadores, de modo a que se preserve o conhecimento da arquitetura indígena no Brasil.

Os centros históricos de importantes cidades brasileiras também são alvo de experiências que buscam combinar recuperação do patrimônio e inclusão social. Érica Diogo descreve com detalhes o processo de recuperação do Centro Histórico de Salvador, capital da Bahia, e a conquista de moradores que, apesar dos vínculos com o local, estavam excluídos da proposta de revitalização da área.

Os conflitos entre o direito à moradia e o direito à cultura merecem igual destaque. George Alex da Guia e Sandra Bernardes Ribeiro revelam a emergência de tais conflitos no processo de constituição do Parque Histórico Nacional dos Guararapes, conduzido pelo IPHAN desde 1971. Destinado a promover a preservação das áreas onde ocorreram batalhas que culminaram com a expulsão dos holandeses do Brasil, no século XVII, o Parque ainda não ganhou materialidade. Isso significa dizer que não contou com a devida regularização fundiária, gerando conflitos importantes com a população residente no local, hoje cerca de 30 mil habitantes e 7.500 moradias.

Igual relevância pode ser identificada na contribuição da arquiteta e urbanista Maria Beatriz Weissheimer. A autora apresenta o projeto de urbanização de regiões do Estado do Pará, idealizado por Henry Ford nos anos 1920, e que serviria para dar sustentação à produção de borracha na Amazônia. É nesse contexto que surgem as cidades de Fordlândia e de Belterra, seguindo modelo que acompanhou outros empreendimentos de empresas norte-americanas na América Latina no mesmo período. As duas cidades teriam sido empreendimentos fracassados ou, visto sob outra ótica, esse legado fordiano poderia ser redimensionado com foco na preservação do patrimônio cultural e na adequação das habitações às condições locais, de modo a ganhar contornos sustentáveis em pleno século XXI?

O conjunto de artigos apresentado nessa edição não pretende esgotar tema de tamanha complexidade. Ainda assim, pode servir de guia aos interessados em compreender e apresentar soluções para os desafios da habitação social, tendo em conta os elementos do ambiente e da cultura local e regional.

 

 

Présentation

Le rôle social de l’habitation et les complexes relations que celle-ci doit nécessairement établir avec les éléments de l’environnement constituent le thème des articles réunis dans la 45e. édition de la revue Ciência & Ambiente.

Ce numéro a été organisé à partir des suggestions proposées par l’éditeur français Pascal Acot, étant donné les riches expériences de terrain acquises au Laboratoire International pour l’Habitat Populaire (LIHP) dont il fait partie, et avec la participation également importante de l’éditeur brésilien Andrey Rosenthal Schlee, membre de l’Institut du Patrimoine Historique National (IPHAN). Les articles sont signés par des architectes, urbanistes, geographes et paysagistes de la France et du Brésil.

Dans le premier texte, Camille Acot s’attache à identifier les obstacles politiques et économiques qui s’opposent à la mise en place d’un habitat environnementalement digne et épanouissant pour tous: le libéralisme en matière économique et son cortège de désengagement des Etats au bénéfice d’intérêts privés est au centre de sa réflexion. Avec au passage la critique de l’idée de “vertu des bidonvilles” et de l’éloge, par ONU-Habitat, de l’économie informelle comme “porteuse de nouvelles solidarités”.

Jean-Pierre Bouanha développe la dimension environnementale du texte précédent en l’intégrant au champ culturel. Son approche historique balise ainsi les étapes de la construction sociale et culturelle de l’urbain, jusque dans ses aspects écologiques les plus humanisés: en dernière instance, l’habitat populaire représente aussi bien un facteur d’enrichissement culturel qu’un produit du processus continu et progressiste de son élaboration. Les êtres humains doivent être dès lors saisis comme producteurs, acteurs et gestionnaires libres de leur propre environnement. En ce sens, il ne serait pas exagéré d’inscrire les mouvements pour l’habitat populaire dans le processus global de la libération humaine.

Quelle place pour l’habitat populaire à l’heure de la “contrainte énergétique”? s’interrogent les urbanistes Vanessa Becciu et Jeremy Jegouzo. La “crise énergétique”, à l’heure du réchauffement climatique et de l’épuisement annoncé des énergies fossiles, marque désormais toute les politiques urbaines: il s’agit d’intervenir tant au plan de l’efficacité énergétique des bâtiments privés et publics, qu’à celui de la réduction du gaspillage énergétique lié à la nécessité des transports urbains et interurbains. A travers l’exemple de la ville d’Usme (périphérie de Bogota), notamment, les auteurs montrent que les solutions avancées sont le plus souvent stéréotypées alors qu’elles devraient prendre en compte la singularité des situations environnementales tout comme celle des caractéristiques culturelles des populations concernées.

Les paysagistes Sylvain Delboy et Sarah Kassler abordent la question controversée de l’agriculture urbaine dans l’habitat populaire. Cette pratique revêt en effet des aspects très différents dans le monde. Il y a ainsi peu de points communs entre la mode de l’horticulture dans les quartiers parisiens nantis et le développement vital de cette pratique à Cuba, victime d’un embargo économique depuis 1962 – et récemment confirmé par le président Barack Obama. Aujourd’hui, 800 millions de personnes dans le monde pratiqueraient l’agriculture urbaine, ce qui induit de nouvelles structurations des territoires concernés. Celles par exemple du parc Baix Llobregat à Barcelone et du parc agricole Sud Milan, ou encore de la ville de Detroit aux USA, touchée de plein fouet par la crise de l’industrie l’automobile. Dès lors, dans le territoire d’Usme, l’agriculture urbaine pourrait se révéler comme un facteur non négligeable, parmi d’autres, du développement urbain.

La place du travail dans l’habitat populaire est l’une des questions qui se situent au coeur de la réflexion du LIHP. Ainsi, et à seul titre d’exemple, les trajets interminables qui rythment la vie des êtres humains dont le logement est éloigné de leur lieu de travail représente un gaspillage financier, une aberration écologique et du temps de vie littéralement perdu. Géographe universitaire et praticienne de terrain, Corinne Luxembourg va cependant plus loin dans son article. La question de la durabilité, sociale et environnementale, est saisie comme cruciale: il ne s’agit pas de réduire le travail dans la ville à la présence d’usines – aussi “écologiques” puissent-elles être – les unités artisanales y ont aussi leur place – mais aussi et surtout “(…) de prendre acte du fait que l’existence de la ville durable est indissociable de l’imbrication avec le travail et qu’inversement la transformation sociale ne se joue pas uniquement sur le lieu de travail mais aussi dans la ville, dans les quartiers, dans la conception que l’on a de l’habitat et de l’espace public”.

Les demeures indiennes et leur profonde transformation à l’heure actuelle sont étudiées par Andrey Rosenthal Schlee. Selon le recensement fait par l’Institut Brésilien de Géographie et Statistique (IBGE) de l’année 2010, 87,4% de la population indienne vivent dans des “maisons” et non plus dans des “ocas” ou “malocas”, leurs demeures traditionnelles. De tels biens culturels, en franc processus de disparition, méritent d’être enregistrés avec urgence par des architectes et historiens pour la préservation des connaissances sur l’architecture indienne au Brésil.

D’autre part, les centres historiques d’importantes villes brésiliennes sont objet d’expériences qui cherchent à harmoniser la restauration du patrimoine et l’inclusion sociale. Érica Diogo décrit en détails le travail de reconstruction du Centre Historique de Salvador, capitale de l’état de Bahia, et les conquêtes sociales des habitants qui, malgré leurs liens naturels avec ce site, étaient exclus du projet de sa restauration.

Les conflits qui s’établissent entre le droit à l’habitation et le droit à la culture sont le sujet d’une approche également importante faite par George Alex da Guia et Sandra Bernardes Ribeiro. Les auteurs montrent l’éveil de tels conflits dans la région métropolitaine de Recife depuis le moment de la constitution du prétendu Parc National des Guararapes, par IPHAN, en 1971. Destiné à garantir la préservation des sites où les batailles qui aboutirent à l’expulsion des envahisseurs hollandais du territoire brésilien ont eu lieu, au XVIIe. siècle, ce Parc n’est pas encore effectivement constitué jusqu’à l’heure actuelle: des problèmes de régularisation foncière, parmi d’autres, sont à la base des disputes avec une population locale d’environ 30 mil habitants et 7.500 demeures.

Dans son article, Maria Beatriz Weissheimer, architecte et urbaniste, présente le curieux projet conçu par Henry Ford dans les années 1920, dans une région éloignée de l’état du Pará, projet qui devrait soutenir la production du caoutchouc en Amazonie. Les villes de Fordlândia et de Belterra ont été bâties dans ce contexte selon le modèle qui a inspiré d’autres entreprises nord-américaines en Amérique Latine à la même période. Ces deux villes auraient-elles été des projets ratés ou bien, dans une optique nouvelle, celle de la préservation du patrimoine culturel et de l’adéquation des habitations aux conditions de l’environnement, seraient-elles des entreprises durables en plein XXIe. siècle?

Enfin, l’ensemble des articles présentés dans cette édition n’a pas la prétension de fournir toutes les clés à un thème si complexe. Quoiqu’il en soit, les réflexions et les expériences concrètes disponibles ici peuvent servir de guide à ceux qui s’intéressent aux problèmes de l’habitat social et qui en cherchent des solutions tout en tenant compte des éléments de l’environnement et de la culture locale et régionale.

Artigos

POINT DE VUE
LABORATOIRE INTERNATIONAL POUR L’HABITAT POPULAIRE (LIHP)
Jean-François Parent e Pascal Acot

PONTO DE VISTA
LABORATÓRIO INTERNACIONAL PARA O HABITAT POPULAR (LIHP)
Jean-François Parent e Pascal Acot

CRISE DE LA VILLE, CRISE DE L’HABITAT POPULAIRE
(CRISE DA CIDADE, CRISE DO HABITAT POPULAR)

CONSÉQUENCES ENVIRONNEMENTALES
(CONSEQUÊNCIAS AMBIENTAIS)
Camille Acot

PLACE ET RÔLE DU TRAVAIL DANS L’HABITAT POPULAIRE
(LUGAR E PAPEL DO TRABALHO NO HABITAT POPULAR)

UN ENJEU DE DÉVELOPPEMENT DURABLE
(UMA APOSTA NO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL)
Corinne Luxembourg

L’HABITAT POPULAIRE, REFLET DU RAPPORT DES SOCIÉTÉS HUMAINES À LEUR ENVIRONNEMENT
(O HABITAT POPULAR, REFLEXO DA RELAÇÃO DAS SOCIEDADES HUMANAS COM SEU MEIO AMBIENTE)
Jean-Pierre Bouanha

QUELLE PLACE POUR L’HABITAT POPULAIRE À L’HEURE DE LA “CONTRAINTE ÉNERGÉTIQUE”?
(QUAL O LUGAR PARA O HABITAT POPULAR EM TEMPOS DE “CONTENÇÃO ENERGÉTICA”?)

Jeremy Jegouzo e Vanessa Becciu

VERS L’ÉMERGENCE D’UN URBANISME AGRICOLE?
(A CAMINHO DA EMERGÊNCIA DE UM URBANISMO AGRÍCOLA?)

LE CAS DU TERRITOIRE D’USME, COLOMBIE
(O CASO DO TERRITÓRIO DE USME, COLÔMBIA)
Sylvain Delboy e Sarah Kassler

A CONTRIBUIÇÃO DOS ARQUITETOS PARA O ESTUDO DA MORADA INDÍGENA
(LA CONTRIBUTION DES ARCHITECTES À L’ÉTUDE DE LA DEMEURE DES INDIENS)

Andrey Rosenthal Schlee

HABITAÇÃO SOCIAL NO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
(L’HABITATION SOCIALE AU CENTRE HISTORIQUE DE SALVADOR)

Érica Diogo

A QUESTÃO URBANA E O PATRIMÔNIO CULTURAL (LA QUESTION URBAINE ET LE PATRIMOINE CULTUREL)
O DIREITO À MEMÓRIA E À MORADIA NO ESPAÇO URBANO DO PARQUE HISTÓRICO NACIONAL DOS GUARARAPES
(LE DROIT À LA MÉMOIRE ET À L’HABITATION DANS L’ESPACE URBAIN DU PARC HISTORIQUE NATIONAL DES GUARARAPES)
George Alex da Guia e Sandra Bernardes Ribeiro

FORDLÂNDIA E BELTERRA, CIDADES SUSTENTÁVEIS DO SÉCULO XXI?
(FORDLÂNDIA ET BELTERRA, DES VILLES DURABLES DU XXIE. SIÈCLE?)

Maria Regina Weissheimer