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Reserva Natural Vale

Editores convidados
Marta Cecília Martins Klerulff
Renato S. Bérnils

Julho/Dezembro de 2014

Editorial

Ao aceitar o convite para apresentar esta volumosa e valiosa coletânea sobre a Reserva Natural Vale, que me fez esta guerreira do bem que é a Cecília Kierulff, procurei saber o significado do termo “prefácio”. Dentre as dezenas de definições que encontrei, a única aqui aplicável foi: “aquilo que é escrito antes dos outros”. Mas, o que deveria ser escrito? Discorrer sobre os temas explanados nos artigos, melhor do que os seus renomados autores já tinham feito, seria tarefa impossível. Felizmente, complementando o honroso convite, havia uma bem-vinda sugestão para contar sobre minhas primeiras viagens à região da Reserva Natural Vale. Sugestão acolhida, lá vai o que aconteceu.

Lá pelos distantes sessenta anos atrás do presente, ou seja, em 1953 e 1954, tive a ventura (melhor dito, a aventura) de percorrer mais de 2.000 quilômetros da planície norte-costeira espírito-santense, entre as serras interioranas e o oceano, desde o norte de Vitória até a fronteira com o sul da Bahia. Foram duas expedições científicas pioneiras, com objetivos fitogeográficos e fitotaxonômicos, organizadas pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Já naquele tempo, no amplo panorama dos tabuleiros, as matas densas somente persistiam em capoeirões isolados e nas duas reservas governamentais: o Parque Refúgio de Animais Silvestres de Sooretama, da Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura, e a Reserva Florestal Estadual de Barra Seca. Na vastidão restante da paisagem predominavam imensas áreas de pastagens pobres típicas do regime de pecuária extensiva, grandes lavouras de mandioca e incontáveis terras degradadas abandonadas. Do sul para o norte, dos ambientes desbravados e já explorados pelos ciclos agrícolas do café e da pecuária extensiva, com evidentes mostras de esgotamento e degradação dos recursos naturais, entrávamos em ambientes menos conhecidos, menos alterados, porém onde já havia passado o machado em busca das madeiras de lei. Seguindo mais para o norte, do rio São Mateus até a fronteira com a Bahia, imperavam os ambientes pouco conhecidos e até desconhecidos do sertão bruto, com extensas matas ainda possuidoras de remanescentes de madeiras de lei que tinham sobrevivido à ganância madeireira.

Rodovias? Naquela época distante (mas não tanto), só dentro de núcleos urbanos é que se encontravam trechos de ruas e estradas ditas pavimentadas, na maioria em verdade ainda na fase de ideias ou projetos. Em todas as zonas rurais, as estradas e caminhos eram de terra, batida ou não, e as vias de acesso limitavam-se a simples trilhas sertão adentro, onde muitas vezes cruzávamos com caçadores clandestinos e machadeiros furtivos procurando localizar madeiras de lei. Tais encontros eram sempre efetuados na base de total desconfiança e precaução de parte a parte, em razão dos lugares ermos e desabitados onde se realizavam. A regra era cumprimentar laconicamente, e com armas nas mãos. Sim, todos portavam armas, além do onipresente facão-de-mato, inclusive nós.

Pontes rodoviárias? Nem pensar; as demoradas travessias dos volumosos rios Doce e São Mateus exigiam doses extras de paciência e de tolerância dos viajantes, pois só podiam ser feitas com uso de pesadas e lentas balsas de pranchões de madeira sobre grandes tambores metálicos, laboriosamente movidas pelos músculos dos balseiros.

Água potável? Embora chovesse abundantemente, não era nada fácil de conseguir naqueles extensos tabuleiros, exceto em poços profundos cavados por alguns sitiantes; podia sim ser obtida nos pequenos riachos que se formavam nas beiras dos tabuleiros ou nas margens de algumas isoladas lagoas interioranas.

Nas nossas incursões solitárias por dentro dos grandes e ilhados capoeirões, por vezes fomos surpreendidos com distantes esturros de jaguares, chamados popularmente de onças-pintadas, e comumente topávamos com pegadas de antas, capivaras, queixadas, veados-mateiros etc. Lá, dos nossos anoiteceres em acampamentos, ainda guardo bem viva a lembrança dos três piados longos e aflautados dos macucos, como que anunciando o fim de mais um dia. Aves silvestres se mostravam a todo momento; bandos de maitacas, de papagaios e até de araras nos surpreendiam nas longas picadas, as quais quem quase não trilhava era o bicho homem. Recordo com saudade a visão de um grande uiraçu ou harpia (a nossa maior ave de rapina, atualmente quase extinta) pousado num galho da copa emergente de uma altíssima árvore, anotado em minha caderneta de campo.

Sem saudosismo piegas, belos tempos aqueles que não mais existem.

Que essa iniciativa empresarial de criar e manter a extraordinária Reserva Natural Vale, já reconhecida oficialmente pelo Conselho Nacional da Biosfera da Mata Atlântica como Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e, assim, considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, seja tomada como exemplo a ser multiplicado em outras regiões carentes de cobertura florestal, são os meus sinceros votos.

Lembremo-nos da célebre frase de Goethe: “A Natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas páginas”. O presente volume é justamente um livro sobre a Natureza, valioso em todas as suas páginas.

Boa leitura, amigos!

Mas não pensem que esta apresentação acabou! A incansável Cecília me avisa que os autores aqui reunidos pensaram em homenagear o Almirante Ibsen (lamentavelmente falecido ao final de julho de 2014); indaga se eu gostaria e poderia incluir algumas palavras, e finaliza o pedido dizendo: “Tenho certeza de que ele ficaria orgulhoso (e muito feliz) com essa homenagem, mas isso, claro, apenas se o senhor concordar”. Como eu poderia não concordar?

Porém, se há tarefa impossível é homenagear em algumas palavras a ilustre personalidade do Almirante Ibsen de Gusmão Câmara; para isso, seria necessário um livro inteiro. Em nossos saudosos papos particulares sobre o futuro da Humanidade, sempre chegamos à conclusão de que o Homem não merecia a sua classificação taxonômica científica de Homo sapiens sapiens. Hoje, querido amigo, permita discordar parcialmente da nossa conclusão, pois posso afirmar que se alguém merece aquela classificação, é justamente o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara.

Se há um Paraíso, é um Jardim, e nele certamente ocupa o nosso saudoso Ibsen uma posição de destaque na formação de um Conselho Celestial de Conservação da Natureza.

Alceo Magnanini

Artigos

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